A paulista Tatiane Leite foi da ciência da computação ao trabalho com pós-produção em filmes como Rei Leão, Capitã Marvel e Animais Fantásticos
Não é novidade que o Brasil é um polo exportador de talentos criativos. Pois foi nos efeitos visuais que a brasileira Tatiane Leite, de Santo André, no ABC Paulista, encontrou seu caminho profissional, até se tornar um dos grandes nomes brasileiros da área. Desde quando estudava engenharia da computação na Unicamp, em Campinas, Tati já se interessava por animação 3D e por computação gráfica. Depois de se formar, decidiu se especializar em ferramentas de manipulação de rostos em imagens, e, após concluir o mestrado, decidiu se mudar para os Estados Unidos em 2012 para estudar na Universidade da Califórnia (UCLA).
Apesar do choque cultural e do período de adaptação, a mudança foi essencial para que Tati tivesse contato com a indústria em que sempre quis trabalhar. Depois de muito estudo e prática, sua primeira participação em uma grande produção foi em Homem-Formiga, da Marvel. Tati foi então tecendo novos contatos e relações no mercado, assim conquistando trabalhos maiores como em produções como Missão: Impossível – Efeito Fallout, Capitã Marvel e Animais Fantásticos: os crimes de Grindewald. Seu trabalho mais recente foi no time de efeitos especiais de O Rei Leão, live action da Disney.
Em passagem pelo Brasil para participar do Festival Whext, evento dedicado à indústria audiovisual organizado pela Associação Brasileira da Produção de Obras Audiovisuais (Apro), Tati falou ao Meio & Mensagem sobre seu começo na indústria, as etapas de pós-produção e a presença de mulheres na área.
M&M – De onde veio seu interesse pelo mercado de efeitos visuais?
Tatiane – Sempre tive interesse pela área gráfica, mas se hoje ainda temos um mercado que é incipiente e que está só começando, imagine naquela época. Por isso, pensei que seria mais interessante ir para a computação. Sabia que havia um pessoal na Unicamp trabalhando com a parte de animação e por isso fui. Lá estudei de tudo no campo da computação, mas sempre focando em processamento de imagens, animações e jogos, pendendo para essa área gráfica. Fiz uma iniciação científica em animação facial e depois fui trabalhar com computação gráfica e uma área técnica. No mestrado, tive a oportunidade de ir para uma conferência nos Estados Unidos e vi que era um ambiente muito inclusivo, onde era fácil encontrar e conversar nos corredores com pessoas da área.
Como conseguiu as primeiras oportunidades na área?
Como eu venho de uma área mais técnica, e não tão artística, posso dizer que o processo é árduo e difícil. A gente acha que os Estados Unidos é culturalmente é similar, mas na verdade é um país muito diferente. Foi um processo lento de adaptação, aprendizado e crescimento, afinal estava em um país estrangeiro estudando algo diferente do que estava acostumada. Estudei muito, fui em muitas feiras de trabalho, conversei com muitas pessoas de lá para ir me ambientando e conseguir me encaixar. Acho que estar inserida em um ambiente educativo da universidade também me ajudou, pois tive professores que foram mentores e me ajudaram a refinar o portfólio.
Qual foi o trabalho mais marcante da sua carreira até então?
O Rei Leão me marcou muito, afinal assistia o filme desde criança e poder fazer parte desse live action foi um privilégio enorme. O primeiro que eu fiz foi o Homem-Formiga, e é claro que também foi incrível já começar com uma marca grande como a Marvel.
No quê exatamente consiste o trabalho com efeitos visuais? Qual é a sua especialidade?
O trabalho varia muito de filme para filme e de acordo com as suas habilidades com efeitos especiais. Como tive um background técnico de engenharia, para mim é fácil me adaptar entre softwares diferentes. Alguns trabalhos têm a ver com o rejuvenescimento ou envelhecimento facial. Por exemplo, em Capitã Marvel, estive no time que ajudou a rejuvenescer o Samuel L Jackson. Em Rei Leão, trabalhei bastante com a parte de iluminação. Em outros, o trabalho é mais de composição, para deixar a tela limpa para ser substituída por outra imagem, ou em outros, mas sobre modelagem 3D. Acho mais gostoso transitar entre diferentes áreas.
Como descreveria o dia a dia de trabalho na pós-produção?
O ritmo de trabalho é muito acelerado, porque como é a etapa final da realização de um filme, existe muita urgência e o tempo para a execução é bem específico. Em alguns momentos chega a ser até tenso e há vezes em que chegamos a trabalhar até 60 horas semanais. Imagine que existe um projeto em edição e foram estipuladas 100 cenas para edição, mas, durante a montagem, os diretores decidem incluir e substituir cenas. Então, o que seriam 100 cenas em dois meses, passam a ser 130, por exemplo, e aí gera um acúmulo. Tem projetos em que você só tem contato com o diretor e supervisor de efeitos visuais, e, em outros, tem mais contato com o diretor e diretor de foto, como foi no caso de o Rei Leão.
O que mais te chamou a atenção na experiência no set em O Rei Leão?
Foi muito diferente. Não é comum que artistas de efeitos especiais vão para o set de filmagem, mas dessa vez eu estava lá com outros artistas. Foi criado todo um kit de ferramentas novo para a realização do filme com realidade virtual. Tínhamos óculos de realidade virtual no set, onde múltiplos usuários podiam estar dentro da cena e ela era filmada como se fosse real. Tínhamos um set de verdade, com movimentos de câmera reais, dolly e steadycams, mas tudo era traduzido para o mundo virtual.
O mercado audiovisual, de maneira geral, ainda é muito dominado por homens. Como é a presença de mulheres na área de efeitos especiais, especificamente?
Quando mudei para os Estados unidos, não achava que veria muita diferença, mas é muito grande a disparidade na quantidade entre homens e mulheres, da mesma forma que na engenharia ou até maior. Vejo algumas mulheres como supervisoras de script ou como diretoras executivas, mas na área técnica é muito raro. Trabalhei em muitos times em que eu era a única mulher no grupo. Para você ter uma ideia, se pegarmos toda a história do Oscar, apenas três mulheres foram indicadas à categoria de supervisão de efeitos visuais, e só uma ganhou. Ainda temos um caminho muito grande para percorrer, mas a tendência é que vejamos cada vez mais a mulherada se jogando. Para mim, pessoalmente, os melhores projetos são aqueles em que temos diversidade de gênero e cultural. Isso vai definir a qualidade final do projeto e a satisfação das pessoas em trabalhar. A verdade é que para entrar você precisa de uma janela, e a partir daí consegue mostrar seu valor. Sempre pensei, a partir do momento em que qualquer estúdio me contratava, que estava lá de igual para igual. Mas é fato que na hora em que está mandando currículo, algumas pessoas descartam seu currículo e não o consideram por conta de ser um nome estrangeiro.
Enxerga alguma tendência específica para a área de efeitos visuais e especiais?
Pelo o que vi em O Rei Leão, a realidade virtual vai mudar bastante o processo de pós-produção nos filmes. Muitos diretores gostam mais de live action e não querem se envolver tanto com a pós, mas o VR vai mudar completamente a dinâmica, pois eles vão poder interagir com os efeitos e tomar mais decisões criativas no set. Acho que a área de efeitos especiais vai ser mais integrada e colaborativa. Nas produções tradicionais, você tem o storyboard da cena, e a partir dele geralmente o diretor conversa com o supervisor de efeitos especiais. Então essa informação é direcionada para um grupo de trabalho, que desenvolve uma pré-cena e a devolve para o diretor. É um processo que vai e vem muitas vezes e há bastante retrabalho. Quando você tem a oportunidade de resolver mais coisas no set, inclusive animações, a ideia criativa se estabelece desde o começo. Acho que a dinâmica tende a ficar mais rápida.
Fonte: Meio&Mensagem