O Supremo Tribunal Federal (STF) começa a julgar hoje (30), um dos assuntos mais polêmicos envolvendo a formação escolar de crianças e jovens – a constitucionalidade do ensino domiciliar no Brasil. Desde 2015, o tema aguarda uma determinação da Corte. A disputa coloca em lados opostos pais que desejam educar seus filhos em casa e o Poder Público que defende a obrigatoriedade da matrícula e a frequência escolar de crianças e adolescentes. O relator do caso é o ministro Luís Roberto Barroso.
O polêmico assunto encontra ferrenha defesa dentro da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned). O número de famílias que optam pela educação em casa, prática conhecida como homeschooling, tem crescido no Brasil. Em 2018 chegou a 7,5 mil famílias, mais que o dobro das 3,2 mil famílias identificadas em 2016. A estimativa é que 15 mil crianças recebam educação domiciliar no país atualmente.
Até mesmo a Promotoria de Justiça de Defesa da Educação, um braço do Ministério Público no Distrito federal, entrou no assunto, sustentando que a homeschooling “está em consonância com o princípio fundamental da República do pluralismo político e compatível com o sistema jurídico-legal vigente, dispondo a família do direito ao exercício da liberdade educacional quanto à prioridade na escolha da direção, criação e educação dos filhos menores – liberdade de aprender e ensinar, incluindo a educação familiar”.
Até novembro de 2016 algumas famílias brasileiras chegaram a ser processadas porque o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases determinam que a matrícula de crianças em idade escolar é obrigatória nas escolas, sejam estas da rede pública ou particular. O processo era quase 100% das vezes civil, raramente criminal e atingia um percentual pequeno das famílias. Algo em torno de 1,5%. As condenações que aconteceram resultaram em multas. Nunca houve risco concreto dos pais serem presos ou perderem a guarda dos filhos por educá-los em casa.
Mas a partir de novembro de 2016, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso determinou a suspensão dos processos que estavam sobre as famílias que educavam em casa. Essas famílias estão com os processos paralisados até que o STF decida a respeito. Como consequência, nenhuma outra família pode ser processada até que o tribunal decida sobre a constitucionalidade da educação domiciliar. O julgamento no Supremo deve definir um entendimento único para todos os casos desse tipo que tramitam na Justiça brasileira, estabelecendo o que o tribunal chama de tese de repercussão geral.
Histórico – O caso que será julgado em plenário e servirá de parâmetro para os demais foi levado ao Supremo pelo microempresário Moisés Dias e sua mulher, Neridiana Dias. Em 2011, o casal decidiu tirar a filha de 11 anos da escola pública em que estudava no município de Canela (RS), a aproximadamente 110 km de Porto Alegre, e passar a educá-la por conta própria.
Eles alegaram que a metodologia da escola municipal não era adequada por misturar, na mesma sala, alunos de diferentes séries e idades, fugindo do que consideravam um “critério ideal de sociabilidade”. O casal disse que queria afastar sua filha de uma educação sexual antecipada por influência do convívio com colegas mais velhos.
A família argumenta ainda que, por ser cristã, acredita no criacionismo – crença segundo a qual o homem foi criado por Deus à sua semelhança – e por isso “não aceita viável ou crível que os homens tenham evoluído de um macaco, como insiste a Teoria Evolucionista [de Charles Darwin]”, que é ensinada na escola.
Em resposta, a família recebeu um comunicado da Secretaria de Educação de Canela ordenando a “imediata matrícula” da menina em uma escola. O Conselho Municipal de Educação também deu parecer contra o ensino domiciliar, “por não se encontrar regulamentado no Brasil”.
O casal recorreu à Justiça, mas teve negado um mandado de segurança em primeira e segunda instâncias. Em sua sentença, o juiz Franklin de Oliveira Neto, titular da Comarca de Canela, escreveu que a escola é “ambiente de socialização essencial” e que privar uma criança do contato com as demais prejudica sua capacidade de convívio.
“O mundo não é feito de iguais”, escreveu o juiz. “Uma criança que venha a ser privada desse contato possivelmente terá dificuldades de aceitar o que lhe é diferente. Não terá tolerância com pensamentos e condutas distintos dos seus”.
Diversidade na escola – Para a Advocacia-Geral da União (AGU), as normas brasileiras estabelecem que a educação deve ser oferecida de forma gratuita e obrigatória pelo Poder Público.
“É muito importante destacar que a escola possibilita um aprendizado muito mais amplo que aquele que poderia ser proporcionado pelos pais, no âmbito domiciliar, por maiores que sejam os esforços envidados pela família. Isso porque ela prepara o indivíduo para situações com as quais inevitavelmente haverá de conviver fora do seio familiar, além de qualificá-lo para o trabalho”, diz a AGU.
Para a instituição, nenhum núcleo familiar será capaz de propiciar à criança ou ao adolescente o convívio com tamanha diversidade cultural, como é próprio dos ambientes escolares. “Sendo assim. a escola é indispensável para o pleno exercício da cidadania”, acrescenta.
De acordo com a Procuradoria-Geral da República, a educação familiar não encontra amparo na Constituição. “A utilização de instrumentos e métodos de ensino domiciliar para crianças e adolescentes em idade escolar, em substituição à educação em estabelecimentos escolares, por opção dos pais ou responsáveis, não encontra fundamento próprio na Constituição Federal”.
Há oito anos, o Conselho Nacional de Educação (CNE) emitiu um parecer orientando que as crianças e os adolescentes sejam matriculados em escolas devidamente autorizadas. O CNE também entende que a legislação vigente enfatiza “a importância da troca de experiências, do exercício da tolerância recíproca, não sob o controle dos pais, mas no convívio das salas de aula, dos corredores escolares, dos espaços de recreio, nas excursões em grupo fora da escola, na organização de atividades esportivas, literárias ou de sociabilidade, que demandam mais que os irmãos apenas, para que reproduzam a sociedade, onde a cidadania será exercida”.
Direito à dignidade – Na avaliação das famílias favoráveis ao homeschooling, a educação domiciliar garante o direito à dignidade e ao respeito, assegurando uma educação mais individualizada e, portanto, mais efetiva.
“Mesmo nas melhores escolas, a educação necessariamente é provida de forma massificada, sem atentar para as necessidades específicas de cada criança e sem prover a elas as técnicas, os instrumentos e as metodologias do ensino-aprendizagem mais adequadas e qualificadas ao tempo presente”, diz a Aned.
“Estamos buscando a autonomia educacional da família, não somos antiescola, não estamos lutando contra escola, apenas somos a família buscando uma nova opção que, no nosso entender, é melhor para o nosso filho”, diz o presidente da Aned, Rick Dias.
Ele conta que tirou os filhos da escola há oito anos, quando a mais velha tinha 12 anos e o mais novo, 9. Hoje, a mais velha cursa relações internacionais em uma universidade particular. “Não cremos que o Estado deva definir como devemos educar nossos filhos”.
Pelo mundo – O homeschooling está ganhando cada vez mais adeptos no Brasil, mas ainda é uma novidade. Pouco mais de 3 mil famílias estão cadastradas oficialmente no banco de dados da Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), mas o número total é bem maior, pois muitas famílias ainda não assumem publicamente, por receio da situação legal no país – o diretor jurídico da Aned, Alexandre Magno, garante que não há irregularidade em sua prática, e até oferece suporte a famílias que enfrentem qualquer problema.
Os Estados Unidos representam o maior exemplo sobre o assunto, com algo em torno de 2,5 milhões de alunos em idade escolar adeptos do sistema, segundo o National Home Education Research Institute (NHERI). Isso representa mais de 2% da parcela total de crianças e adolescentes nessa faixa etária.
O início, na década de 80, também não foi fácil, com a condenação de algumas famílias que tiraram seus filhos da escola. Mas a luta pela causa falou mais alto e no início dos anos 90 o homeschooling foi regulamentado em todos os Estados da nação americana.
Como acontece com todas as questões legais no país, cada um dos 50 Estados tem a sua própria legislação concernente ao tema. Em alguns estados, como em Oklahoma, não é preciso avisar o Estado. Já em outros, como em Nova York e Massachusetts, os passos necessários para uma família educar seus filhos em casa englobam notificar a secretaria local de educação que irá praticar homeschooling com a criança ou adolescente, preencher um documento a ser entregue na secretaria sobre qual será o plano de educação adotado com o filho (como se fosse o currículo anual), manter o registro de datas e horas das aulas por pelo menos 180 dias por ano, e produzir um relatório trimestral e/ou anual relatando o desempenho do homeschooler
Alguns estados aplicam testes independentes para avaliar os estudantes, mas a avaliação geral é feita em provas nacionais como a SAT e ACT (espécie de “Enem” norte-americano)
Outro dado interessante no país – como o homeschooling é regulamentado há mais de duas décadas, existem diversos estudos e materiais sobre o tema – é o desempenho dos alunos em provas comparado com estudantes que estudam em escolas. Na média, os homeschoolers obtêm de 15 a 30% a mais na nota.
Confira alguns números sobre crianças que estudam em casa:
EUA: 2 milhões
África do Sul: 150 mil
Rússia: 70 a 100 mil
Reino Unido: 20 a 100 mil
Canadá: 80 a 95 mil
França 12 a 23 mil