Na terça-feira, primeiro dia da feira Hospitalar, o venezuelano Rafael Grossmann contou um pouco da sua experiência com smart glasses, telemedicina e sua visão sobre o papel que a tecnologia deve ter no cuidado em saúde, no painel “Saúde Inteligente: tecnologia mudando a realidade”, promovido pela ABIMED – Associação Brasileira da Indústria de Alta Tecnologia de Produtos para Saúde. Rafael foi o primeiro cirurgião no mundo a utilizar o Google Glass para transmitir uma cirurgia ao vivo pela internet e atualmente é professor da Singularity University.
“Quando eu fiz a operação, eu não pensei muito sobre aquilo… Um amigo meu postou na Forbes e após algumas horas, havia 6500 visualizações!” disse Rafael relatando o espanto em 2013. Observando o interesse pelo público em geral, e principalmente pelos provedores, ele decidiu trazer essa tecnologia para a sala de aula.
Segundo ele, o modo que ensinamos os médicos como operar uma cirurgia é o mesmo de centenas de anos atrás. Os alunos muitas vezes se contorcem em auditórios para enxergar o que o professor está fazendo lá embaixo, tentando uma melhor visão do procedimento, e isso dificulta o aprendizado. O Google Glass oferece uma nova perspectiva para os alunos, de quem está no controle da operação, uma visão unificada. “Eu posso falar com eles, eles podem fazer perguntas, e eles estão sentados confortavelmente com uma visão perfeita do que está acontecendo. É um dos grandes potenciais dos smart glasses.”
Seu trabalho se destaca por utilizar o poder da tecnologia em favor de uma assistência médica melhor e mais humanizada e para transformar os sistemas de saúde e a educação médica. “Eu vi o poder da comunicação e tomei como responsabilidade ser um educador e difusor dessa tecnologia.” diz com entusiasmo Rafael, e provoca a audiência: “Antes nas aulas de anatomia, os vivos aprendiam com os mortos, através da dissecção. Havia muitas questões envolvidas, éticas, sanitárias e de custos… Mas não precisa ser desse jeito. E se, agora, os vivos aprendessem com a tecnologia?”. Porque utilizar cadáveres ou métodos pouco verídicos quando temos cada vez mais tecnologias para reproduzir situações médicas, tanto por meios ópticos quanto hápticos. Hoje existem ferramentas utilizadas em conjunto com realidade aumentada para sentir a mesma densidade de um corpo ao manipular objetos, e treinar situações que o futuro médico enfrentará em seu dia a dia depois de formado, de forma realista, e claro, em um ambiente muito mais controlado. “Sentir o mundo digital na vida real, esse é o próximo grande passo.” comenta o cirurgião.
Um exemplo é o Hospital Barts em Londres, que transmitiu uma cirurgia ao vivo através de uma câmera 360. A experiência atingiu 55k visualizações em tempo real, algo que seria impossível caso todos estivessem fisicamente na sala. Imaginem o potencial para redesenhar o modo com que procedimentos médicos são ensinados?
Além do ensino, smart glasses podem ser utilizados como assistentes virtuais durante a cirurgia, como uma Siri para a saúde. Rafael explica que, no geral, em uma sala cirúrgica existem muitos equipamentos, instrumentos, tornando o espaço algo valioso. Utilizar um smart glass possibilita acesso ilimitado a dados e conteúdo, e ainda, sem utilizar as mãos, somente comandos por voz ou gestos ao interagir com o sistema, algo muito importante em um ambiente asséptico. “É uma ferramenta que precisa ser ajustada para entrar no fluxo de processos de uma cirurgia. Está indo devagar, mas está indo. Ela tem um papel muito importante em como diagnosticamos, tratamos e educamos.”
Voltando um pouco em sua trajetória, Rafael lembra de suas primeiras experiências como médico na Amazônia da Venezuela. “Era uma área extremamente rural, sem água, sem eletricidade… Mas nós tínhamos telemedicina. Nós usamos tecnologia para conectar áreas subatendidas a provedores”. Atualmente ele participa de um programa em Maine, onde vive, o qual conecta 18 hospitais rurais da área. O professor ainda explicou que o projeto funciona em um esquema acessível e de baixo custo: o equipamento utilizado só precisa ter áudio, vídeo e Wi-Fi, como um ipod touch de menos de 200 dólares.
Ainda sobre sua experiência nos EUA, ele conta que no país tudo é eletrônico na consulta, mas que, em sua visão, isso também distancia a relação médico-paciente. “Nós temos que usar a tecnologia de forma mais inteligente. Em vez do médico passar pela manhã, por exemplo, com um papel checando paciente por paciente, fazendo anotações e transcrevendo para o EHR, porque isso não é feito de modo automático através de smart glasses? O modo que fazemos hoje é pré histórico, é ridículo!” disse Rafael, puxando a discussão para a necessidade de considerar a revisão dos processos e humanização na implantação de novas tecnologias.
Segundo o professor, o problema dos prontuários eletrônicos é a falta de inovação de processos. Se antes os provedores escreviam em papel, agora eles “evoluíram” e passaram a digitar, armazenando os dados digitalmente. Já é um passo adiante, mas não todo o potencial. “As pessoas tentam fazer a mesma coisa que estão acostumadas de modo digital. Isso não faz sentido! Precisamos criar algo que seja radicalmente diferente, uma disrupção criativa!”
Outro ponto, em sua visão, é a transformação do cuidado da saúde em ferramenta política, quando na verdade, o acesso e qualidade são direitos humanos. Muitos acreditam que não há dinheiro suficiente, mas para ele, o problema não é a falta deste recurso e cita os quase 3 trilhões de dólares gastos em saúde no ano passado pelos EUA. E completa: “Na minha opinião o fator chave está na conexão humana. Nós perdemos isso, nós esquecemos do paciente, que em última instancia, deveria ser o elo mais beneficiado. Eu sou muito apaixonado pela tecnologia, e se a utilizarmos de forma inteligente, ela tem o poder de tornar a medicina muito melhor!”
É uma mudança de cultura, de comportamento. Não é só a tecnologia pela tecnologia, é pensar diferente, mudar os parâmetros e como as coisas são feitas. E Rafael provoca novamente, “Temos que ter um desrespeito saudável pelas autoridades para sermos inovadores. Nós somos inteligentes e criativos o suficiente para mudarmos o sistema, a tecnologia evolui exponencialmente e tem uso que nem imaginamos.” Hoje usamos reconhecimento facial para desbloquear o telefone, mas no que mais poderíamos fazer uso em saúde? Para reconhecimento de pessoas não identificadas, tipos e origens de dor, o único obstáculo é até onde vai a nossa imaginação…
Por falar em tecnologias e imaginação, ele finaliza a apresentação citando várias aplicações, dentre as quais valem destaque: protótipos de drones para retirar mais rapidamente vítimas de acidentes em grandes cidades com tráfegos pesados; controle e feedback visual da atividade neurológica através de smart glasses no auxílio à meditação e combate à ansiedade/burnout; otimização do tempo na transmissão de informações entre provedores em situações emergenciais também utilizando smart glasses. Aqui o maior benefício é o aumento da margem para análise do melhor tratamento e a redução de chances de morte ou erros no cuidado médico.
Além dos cases: uso terapêutico de realidade virtual para fobias e pré-operatório, no qual um estudo em 2k pessoas demostrou uma diminuição de 50% no uso de narcóticos no tratamento de pacientes; e do Zipline, um serviço americano de delivery care, que na Africa entrega bolsas de sangue em vilas remotas através de drones e localização via gps, para o tratamento de hemorragia pós parto. “Imaginem o potencial para o tratamento de pacientes sem drogas? Da entrega de suprimentos em qualquer lugar do mundo? O futuro será incrível!” finalizou o entusiasta.
Após a palestra, ainda participaram do painel Denise Santos, CEO da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo, Mariana Perroni – Coordenadora Médica da área de Healthcare Transformation na IBM, e Renato Garcia Carvalho – Presidente do Conselho de Administração da ABIMED e CEO da Philips Brasil.
Renato ressaltou que temos desafios, ainda, básicos. “Temos sim que pensar em tecnologia, mas tecnologia que diminua os custos em saúde, e não somente tecnologia pela tecnologia. Tecnologia que gere mais acesso, seja inclusiva e traga qualidade para toda sociedade.” Denise emendou contando que na Beneficência Portuguesa, um hospital de 1200 leitos e certificado nível 6 pela HIMSS, somente no ano passado implantou registro e prescrição eletrônica em toda a instituição. “Temos que insistir em tecnologias que gerem um valor agregado natural no dia a dia das pessoas. Entendemos que a transformação digital do hospital vem para acelerar processos e ter ganhos produtivos, caso contrário fica difícil”
Para Mariana, estamos em um momento que a tecnologia é crucial para a inovação em saúde. E segundo ela, a inovação precisa ser redefinida, pautada pela medicina personalizada e sistemas orientados à prevenção. “Estamos vivendo a explosão de dados, o desafio não é só o big data, mas também o messy data. Sempre tivemos bastante dados, para se ter uma ideia, a quantidade de informação médica que temos no mundo, entre sensores, exames, prontuários, isso tudo dobra a cada dois anos, mas em 2020, isso vai dobrar a cada 2,5 meses. Então inovar tem tudo a ver com lidar com os dados. Inovar é tomar melhores decisões, para isso a tecnologia é nossa aliada, e por mais irônico que isso possa parecer, tornando inclusive a saúde mais humana e individualizada.”
Fonte: Saúde Business