Para o presidente do IRIA (Instituto Brasileiro para a Regulamentação da Inteligência Artificial), Marcelo Senise, é urgente construir um novo pacto ético com a tecnologia
O que antes era visto como conveniência tecnológica começa a ser interpretado por especialistas como um risco crescente à autonomia humana e à saúde das democracias. Em artigo recente, o sociólogo Marcelo Senise, presidente do IRIA (Instituto Brasileiro para a Regulamentação da Inteligência Artificial), faz um alerta contundente: “Estamos entregando nossa liberdade a sistemas que não compreendem o que é ser humano”.
Segundo Senise, vivemos hoje imersos em uma arquitetura algorítmica invisível que organiza não apenas o fluxo de informações, mas também nossos comportamentos, desejos, relações e até crenças. “Os algoritmos não apenas nos observam. Eles nos moldam, criam realidades personalizadas que reforçam visões de mundo, evitam o confronto com o diferente e esvaziam o espaço do debate público”, afirma.
Para o especialista, essa dinâmica silenciosa e automatizada está corroendo os fundamentos da democracia. Ao invés de censurar ou proibir, os sistemas baseados em inteligência artificial anestesiam. Por meio da hiper personalização de conteúdos, seja em redes sociais, plataformas de streaming ou mecanismos de busca, os usuários passam a viver em bolhas digitais que reforçam suas convicções e suprimem o pensamento crítico. “A realidade deixa de ser descoberta e passa a ser editada por interesses comerciais e políticos”, alerta.
Senise aponta que esse novo tipo de poder horizontal, sedutor e invisível, representa uma ameaça existencial. “O livre arbítrio começa a parecer apenas uma ilusão bem programada. Nossas escolhas são antecipadas, influenciadas e muitas vezes conduzidas por sistemas que priorizam cliques e permanência em plataformas, não a verdade ou a reflexão.”
O impacto, segundo ele, vai além do consumo ou do entretenimento. “A política, a cultura, a justiça e até a forma como nos relacionamos com o mundo estão sendo reprogramadas em tempo real. A democracia, que deveria emergir do diálogo e da diversidade, está sendo substituída por decisões coletivas baseadas em impulsos previsíveis, mediados por algoritmos.”
O presidente do IRIA também chama a atenção para o caráter não neutro da tecnologia. “A inteligência artificial aprende com nossos dados e, com eles, também herda nossos preconceitos, nossas limitações e nossos vícios. Em vez de corrigir desigualdades, ela pode replicá-las em escala industrial.”
Diante desse cenário, Senise defende um novo pacto ético com a tecnologia. Para ele, não basta exigir mais transparência ou melhorias nas políticas de privacidade. É preciso resgatar a autonomia humana diante das máquinas. “A resistência não será apenas nas ruas. Será nas decisões silenciosas do cotidiano: o que escolhemos ler, em que clicamos, o que decidimos ignorar.”
Ele propõe a construção de um humanismo digital, que valorize a dúvida, a contemplação, a pausa e a experiência não mediada por algoritmos. “A pergunta urgente não é o que a IA pode fazer por nós, mas o que ela está fazendo de nós. Se não formos capazes de responder a isso com lucidez, corremos o risco de trocar nossa liberdade por conveniência e nossa humanidade por eficiência estatística.”
Para Senise, o futuro ainda pode ser surpresa. “Mas só se tivermos coragem de tirar o piloto automático e retomar o controle. Precisamos deixar de ser apenas usuários de tecnologia e nos tornarmos agentes conscientes do nosso tempo.”
